Mensagem de Sandra Schamas

10/03/2017

Capinha

Distrito Federal, uma rapsódia de Luiz Bras
Ilustração e diagramação de Teo Adorno
Editora Patuá, São Paulo, 2014

Bela edição de capa dura com ilustrações interessantes e intrigantes.

Já na assinatura do autor uma novidade: um carimbo anunciando o enredo próximo, em forma de labirinto (talvez um mapa de metrô).

Meu caro amigo Luiz,

Apesar de ter feito parte de um grupo de estudos de crítica literária por três anos, apesar de ter me dedicado e me esforçado, o que mais aprendi é que não sou boa nisso. Não sei fazer a análise de uma obra de modo acadêmico, tampouco sei dissecá-la como um cirurgião. Só posso dizer que o livro me captura e eu embarco na viagem e vou traduzindo para a emoção as palavras escolhidas pelo autor.

Distrito Federal não me capturou de cara, fiquei olhando para ele uns bons meses antes de me aventurar na leitura. Nesse processo, confesso, também demorou um tempo para que eu me envolvesse com a complicada trama, talvez por ficar encantada justamente com a escrita em si. Linda, limpa, culta, sonora, poética quase sempre, violenta e escatológica às vezes. Escrever bem é uma expressão pobre para o que você faz. Ainda não sei dar um adjetivo adequado.

O detalhe da página de rosto avisando que é uma rapsódia é fundamental e poderia passar despercebido. O livro é uma rapsódia mesmo, uma mistura de prosa e poesia, e uma ode à loucura dos dias de hoje, tendo em vista que cada parágrafo é um módulo sonoro e semântico.

Nem que você quisesse, não dá para esconder sua vasta cultura e seu cuidado nas mínimas referências, incansável nas pesquisas, eu acredito.

Fiquei impressionada com a sua sensibilidade em relação à vida de um modo geral. Tudo te afeta, tudo. As pessoas e seu comportamento bizarro, o planeta, a tecnologia, o meio-ambiente e todos esses assuntos polêmicos, como a questão de gênero, da opção sexual, do politicamente correto. De um modo muito sofisticado você se vinga traduzindo a raiva que sente de todas essas injustiças nessa história tão fantasiosa e tão real ao mesmo tempo.

Você se lembra do filme Minority Report, de 2002, em que a polícia detecta e impede crimes que estão para acontecer? Então, enquanto lia eu me lembrava daqueles seres sensitivos que ficam numa piscina de água morna, que muito me impressionaram no filme. Me senti como eles, suscetível à qualquer interferência minimamente brusca.

Bem, vamos ao livro:

O livro se divide em três partes: Teoria do caos, Deus ex-machina, Segredos & milagres.

Teoria do caos
Durante a leitura tive a impressão de estar num videogame doido e violento ou dentro do livro ou do filme Alice no País das Maravilhas. O texto é dividido em blocos que se repetem, às vezes completamente, às vezes não, mas é isso que vai dando sentido à trama.

Poderia descrever esse método que você criou de uma maneira muito visual: são cirandas fantásticas girando ao mesmo tempo, uma máquina cheia de engranagens, e o leitor vai pulando de uma para a outra a fim de poder entender o absurdo da história e perceber que ela não é tão absurda assim. Essas rodas vão descrevendo o nosso mundo hoje, bem ruinzinho como está.

Seu livro também me fez lembrar um videoclipe onde a graça é ter muitas informações acontecendo ao mesmo temo: a música, as imagens, as colagens rápidas e todas em movimento. Para ser honesta, tenho dificuldade em assistir videoclipes, fico meio tonta e logo me canso. Com seu livro comecei assim também, não foi uma leitura fácil para mim, mas acabou me encantando pela sofisticação.

Me veio à mente também um texto de Oliver Sacks que acabei de conhecer na oficina que estou fazendo. Olha só:

“Em novembro de 1965, eu consumia doses enormes de anfetaminas todos os dias e depois, não conseguindo dormir, consumia doses enormes de hidrato de cloral, um hipnóide, todas as noites. Certo dia, sentado num café, comecei a ter as alucinações mais desvairadas, que vieram de repente, como descrevi em A mente assombrada.”

Entendi que a brasilidade, os seres mitológicos brasileiros são os que se vingam de modo muito violento de toda essa corrupção e desse caos social que a gente vive. Um currupira e uma saci incorporam dois humanos, ou o que restou de humanidade nos seres, saem fazendo chacinas, estripando, espalhando órgãos e fazendo das vísceras obra de arte. Dá prazer ler isso porque a vontade de acabar de modo bem cruel com cada filho da puta que está nos poderes grandes e pequenos é real. Deve ser muito bom poder jogar esse game e ver o sangue dessa gente espirrando pra todo lado.

O que era o cerrado virou uma imensa metrópole, com uma ilha de clorofila aqui outra ali. Há esperança.

Adorei a comparação de um político a um bacilo, uma força da natureza irracional e destrutiva com a qual não adianta querer argumentar. Discutir com um bacilo? Genial. A afirmação de que cada vez que um corrupto recebe uma propina uma galáxia inteira se apaga… Muito bom.

Os demônios decadentes, os obtusos (duros e moles) omissos porque a lei os impede de sentir, a matéria programável, as detalhadas regras de etiqueta e a fome… Uns passam fome, outros explodem de tanto comer… Nossa! Demais. Os cheiros, as porcarias e descrições absurdas e interessantíssimas, como, por exemplo, uma metralhadora líquida.

Morri de rir com uma frase sua: “preferia um mundo sem bocas, sem cu, sem mandíbulas taradas”. A reflexão sobre o sistema penal e carcerário é incrível, entra até aquela menina que matou o pai e a mãe, “o mundo não precisa de pena de morte, precisa de justiça”. Obras paradas com mato tomando conta… Que tristeza que é isso em nosso sitema. O Face a Face e a brain-net são sacadas brilhantes. Enfiar cotovias vivas na goela dos consultores financeiros, guaixinins no rabo dos diretores de empresas de cartão de crédito, que maravilha.

Nesse primeiro segmento, do que eu mais gostei foi a ideia de que somos viciados no cheiro da corrupção. Pura verdade.

Deus ex-machina
O ritmo se acalma com a justiceira menina-menino e a protetora esfera-cubo-pirâmide, o útero protetor que me lembra o filme A bolha assassina.

“Uma dose de morango sustenido e framboeza bemol” é dez.

Para exemplificar a sofisticação, a sonoridade e a escolha das palavras separei esse trecho:

“A esfera-cubo-pirâmide pensou ter visto o clarão obscuro, o ruído silencioso do seu próprio reflexo esférico-cúbico-piramidal no fundo da reentrância nebulosa. Podia ser apenas um conjunto de memórias misturadas.”

Raízes-tentáculos, pétalas-pinças e espinhos-agulhas são escolhas sensacionais. Gosto também dos neocarcereiros da prisão mental e da libertação da menina-menino dessa terrível prisão.

Segredos & milagres
Nessa última parte a gente volta a lembrar que está em um game e já traz aquela sensação de que as coisas podem melhorar, quando o corrupto começa a sentir medo.

A metrópole aparece com mais presença e a afirmação de que uma cidade superpovoada é o lugar ideal para a solidão é verdadeira, na minha opinião. Estar entre muitos também é uma forma de solidão. Me identifiquei.

Brasília passa a ter músculos e artérias, a metrópole evolui e começa a destruir os humanos (ou quase humanos), e vai se tornando inteligente porque “a evolução jamais barganha, mesmo quando chantageada”, e a cidade se transforma numa gigante centopéia. A chuva ácida dá arrepios e os fedores são nojentos… Os fiscais da prefeitura continuam sendo estripados, a bolha volta, o medo aumenta, a merda se espalha.

Nesse mundo imundo até os grafiteiros aparecem como mais uma coisa que a gente não sabe nem o que pensar nestas alturas do campeonato. Direito do cidadão, a cidade para todos e as polêmicas que surgiram com as medidas do prefeito-coxinha… Como seu livro é de 2014, acho que foi uma profecia.

A imoralidade corrompeu a civilização e essa gente louca acabou com a natureza.

Nesse final é revelado que foram os robôs que fizeram as ilustrações. Faz sentido.

Caótico e violento é o final e mil anos se passam. Depois, luzes se aproximam, ou seja, há luz no final do túnel. Apesar de não estar evidente, o final é cheio de esperança e a gente se sente de alma lavada por ter imaginado tanta vingança. Mas achei positivo, difícil de acompanhar mais superpositivo.

Meu amigo Nelson-Luiz-Teo, que viagem!

Eu nunca tinha lido nada parecido e ainda estou sob o impacto de tanta ação.

Pelo seu livro pude avaliar sua inteligência, sua cultura, seu domínio da língua, sua criatividade e sua imaginação. E bota imaginação nisso! Foi minha primeira leitura de um livro de literatura fantástica de qualidade. Enfim…

Essa foi uma tarefa difícil, como escrever a você, a quem admiro e a quem considero um mestre, as minhas impressões sobre seu livro? Não tinha outro jeito a não ser com o coração.

Me sinto honrada com a tarefa e esse exercício me fez pensar muito sobre a literatura em geral. De que modo ela pode, e vai, evoluir para sair da mesmice, e como eu posso me adaptar a uma nova era, porque é o que eu acho que vai acontecer.

Muito obrigada, meu caro amigo, por deixar que eu entrasse no Distrito Federal e vasculhasse tudo.

Grande abraço,

Sandra

[ Feicibuqui, dia 9 de março de 2017 ]

Transcendência

18/08/2016

Aula-palestra sobre literatura fantástica para grupos de estudo.

Transcendência

São Paulo tem muitos grupos já constituídos, que se dedicam informalmente ao estudo da literatura. Por puro prazer, sem qualquer vínculo acadêmico ou profissional. Foi pra esse público que preparei, também por puro prazer, uma aula-palestra sobre literatura fantástica.

As principais estrelas comentadas são os viciantes Borges, Cortázar, García Márquez, Hilda Hilst, José J. Veiga, Juan Rulfo, Kafka, Lygia Bojunga, Lygia Fagundes Telles e Murilo Rubião. Uma constelação literária transcendente. Mas não se espantem se surgirem referências também do cinema, do teatro e das artes plásticas. O fantástico está em toda parte, em toda arte.

A duração da aula é de uma hora e meia. O número mínimo de participantes? Oito (deitado, é o infinito). E o preço? R$ 50 por pessoa.

Local da aula? O mesmo em que o grupo de estudo se reúne costumeiramente. Data e horário: indicados pelo grupo.

Os grupos interessados podem me contatar no e-mail oliveira.e.cia@uol.com.br

Um poema de Thiago Tenório Maciel

19/01/2016

Curupira-ciborgue

Fora da curva

Pudera ser
Homem
Itinerário para as flores.
Incorporar
O saci
E aniquilar
O concreto.
Chacinar os métodos
Os drinques
As máquinas
E vingar a natura.
Pudera ser
Homem
Um facilitador dos bichos.
Embrenhar-se
No mato
Como mistério protetor
Dos grilos
(Ser evocado pelos grilos
Nos ritos mediúnicos).
Pudera ser
Homem
Uma senda.
Pudera ser
Lenda.

[ Belo poema de Thiago Tenório Maciel, após a leitura de Distrito federal ]

Ateliê de criação literária na Casa Mário de Andrade: turma A

07/01/2016

Turma A

AS LONTRAS DAQUELA HORA vieram dos pontos mais diferentes.
Chegaram curiosas, empolgadas, sem saber que já eram parte de algo que ainda não era, mas seria. Algo importante, macunaímico.
Na bagagem de mustelídeo elas trouxeram um pouco de tudo: luz, carinho, poesia, riso, angústia, tempestade… Foi no centro do redemoinho de diferenças & semelhanças que esse coletivo literário nasceu.
Nascido, ele plantou uma semente: um universo ficcional criado & compartilhado por dezessete sensibilidades. Que germinou, cresceu e deu frutos: uma grande coleção de contos interligados. Que dará origem a uma provocativa coletânea. Que será lançada em março de 2016, na Casa Mário de Andrade.
O Ateliê deste ano de 2015 chegou ao final, mas o final está longe de chegar ao universo amorosamente gestado, parido & compartilhado durante o Ateliê.
Em janeiro & fevereiro, de volta ao trabalho, galera. Temos um filhote pra editar!
[ Fico só pensando o que o fantasma do Mário está achando dessa pajelança. ]

Turma A 2

Oficina Cultural Casa Mário de Andrade

Fotos de Carmem Félix e Sonia Nabarrete

[ O coletivo As Lontras Daquela Hora é Álvaro Cordeiro, André Prado, Erika Neves, Eugen Weiss, Guta Girolamo, João Lourenço, Jorge Nagao, Lady Lou, Lucas Cunha, Luiz Bras, Maga, Mayara Valério, Pamela Zapa, Renata Zamboni, Sonia Nabarrete, Talita Bittioli e Vanessa Farias. ]

Ateliê de criação literária na Casa Mário de Andrade: turma B

07/01/2016

Turma B

Neste momento tão crítico, de ocupações generalizadas, até mesmo a antiga casa do Mário de Andrade foi invadida. Todas as terças-feiras à noite, durante meses.
Almas penadas? Assombrações modernistas? Quase isso.
Na rua Lopes Chaves, 546, uma facção de extremistas da ficção libertária & libertina fumou o cachimbo da guerra e da paz. E da fumaça enovelada surgiu uma galeria de personagens ardilosas, um edifício excêntrico, um universo ficcional compartilhado.
Nesse convescote delirante também nasceu o coletivo ARMÁRIO DO MÁRIO: OCUPAÇÃO LITERÁRIA. Ter convivido durante tanto tempo com esses vinte e um atelienses foi uma experiência gratificante.
Mas a invasão ainda não acabou. Em janeiro e fevereiro continuaremos conspirando, agora pra ocupar tua mente, leitor. Continuaremos trabalhando na sombra, preparando em segredo a coletânea de contos que será lançada em março de 2016.

Luiz Bras

Oficina Cultural Casa Mário de Andrade

Fotos de Eliane Coster

[ O coletivo Armário do Mário: Ocupação Literária é Aldo Menezes, Antony Castro, Brontops Baruq, Cibele Nardi, Dani Alba, Dario Pato, Denise Ranieri, Diana Paz, Elaine Valeria, Eliane Coster, Estela Campos, Fernando Feitosa, Francisco da Sé, Gê Martins, Guilherme Azevedo, Lilia Guerra, Luiz Bras, Maurício Rosa, Paulo Eduardo, Pnina Bal, Tereza Ruiz e Thais Cavalcante. ]

“Distrito federal” resenhado por Tadeu Sarmento

22/12/2015

Distrito federal resenha

De toda a mitologia judaico-cristã, o personagem que mais me interessa é Lúcifer. Mas, atenção: “Lúcifer não é satã (o gênio do mal, segundo a tradição popular). Lúcifer é um eloim igual aos outros e seu próprio nome, Portador da Luz, garantiu-lhe sua indestrutível dignidade de arcanjo” (Édouard Schuré). Pois bem, estava eu admirando as magníficas gravuras de Gustave Doré para o Paraíso perdido, quando o satânico senhor Zuckerberg me avisou que o luciferino escritor Tadeu Sarmento havia publicado na revista Mallarmargens uma incendiária resenha do Distrito federal. Fui conferir e fiquei perplexo. Tadeu tacou fogo em Roma, vomitou lava em Pompeia, devorou os príncipes de Maquiavel, libertou Prometeu do monte Cáucaso, resgatou do inferno os alquimistas. Que mais posso dizer? A devastação foi total. Do mefistofélico palácio do silêncio não ficou pedra sobre pedra.

Para ler, basta clicar aqui.

Nelson de Oliveira no jornal La Capital

10/12/2015

Jornal La Capital

Así es, los libros se retoban. Si tuviera que resumir jocosamente la novela de Nelson de Oliveira usaría esa frase con el objetivo de despertar la curiosidad de mi/s interlocutor/es de turno. Y continuaría.

Los libros fueron inventados para ser leídos, admirados, cuidados, mimados. En eso no se diferencian de otros objetos. Si eso no pasa, ellos buscan la forma de llamar la atención, ¿no te parece?

Pero por suerte en el mundo propuesto por Nelson las cosas no son tan fáciles. Está repleto de historias paralelas que en el momento menos esperado se conectan para dar sentido al plan “maléfico” que un regimiento de criaturas (para mí son igualitas a los gremlins, pero con mucha más onda) quiere llevar a cabo.

Un interrogante entre premonitório y apocalíptico me asalta: ¿llegará el día en el que el ser humano no podrá más dar pie con bola?

En algún punto, sentí que Nelson nos quiere decir eso de una forma delicada, casi subrepticiamente. Tal vez, él lo sepa pero por temor a desatar alguna catástrofe planetaria (superando así a Orson Welles cuando teatralizó en la radio “La guerra de los mundos”) lo ficcionaliza con astucia y cumple su misión cósmica de pasarnos el mensaje.

La verdad no sé. Lo que sé es que la novela es sublime tanto por lo que cuenta como por cómo lo cuenta.

Agustín Arosteguy
Caderno de Cultura
Jornal La Capital, de Mar del Plata

Diálogo literário

11/11/2015

EMIL

Nelson de Oliveira (Brasil) e Alberto S. Santos (Portugal)
Dia 12 de novembro, quinta-feira, às 16h
Livraria Cultura do Bourbon Shopping
São Paulo, SP

Curadoria: Manuel da Costa Pinto e Manoela Leão

Reverberações de Guta Girolamo: um testemunho, um diálogo

25/10/2015

Luiz, o seu texto é absolutamente delicioso! Em estilo, em criatividade, em originalidade das ideias e sua fundamentação teórico-prática, em sua erudição – que nos educa –,  em suas dicas e exemplos e em sua total clareza poética (é um texto muito claro, sem deixar de ser lindo – associo aqui poética à beleza). Meus comentários serão às vezes testemunho, às vezes sincero elogio, às vezes propostas de temas para pensarmos juntos.

O primeiro capítulo, Falas na sala, tocou em pontos que ainda eram, para mim, obscuros. Por exemplo, a “crença no poder formador dos ateliês”. Eu nunca havia pensado, ou melhor, sentido deste modo a experiência do ateliê. Pensei que seria algo burocrático, do tipo, isto é conto, agora escrevam – algo entre o manual e a lição de casa. E qual não foi a minha surpresa em vivenciar algo completamente diferente nos encontros de terças-feiras na Casa Mário de Andrade!

Você pondera que “não é possível ensinar a escrever bem, mas é possível ensinar a não escrever mal” (isto deveria se tornar uma citação sua). E isto ficou muito claro quando, no meu primeiro texto, houve a crítica do bem comportado e artificial. Lembro de você me dizer que as pessoas não falavam daquele jeito. Minha tarefa era, doravante, “sujar meu português”. Parece que fui bem-sucedida com o segundo texto. Daí para a frente se iniciou um processo muito louco de experimentações, e o aprendizado de dividir com os colegas, ouvindo críticas ou elogios – tudo isso magistralmente orquestrado pela sua excelente capacidade de ouvir e conduzir. E com isso cumprir a tarefa de “suprir de leitores o escritor diletante”.

A segunda tarefa proposta, mais difícil, foi a de “encontrar a nossa voz”. Isso, só mesmo com o tempo. De minha parte, fico na experimentação absoluta, tentando gêneros e estilos, até que a tal voz apareça. Mas o legal é que, se eu te entendi bem, ela não precisa ser unívoca, ela pode ser plural, polifônica, subversiva, enlouquecida até!

Minha ambição não é, honestamente, chegar nesta voz. Nem sei se eu conseguiria. Em filosofia o caminho está parcialmente trilhado. Mas em literatura sou, e gostaria de ser sempre, diletante. Mas a filosofia também é uma literatura… tudo isso é muito dialético!

De resto, o seu uso de apoio-partitura, armadilhas-ilusões, e outras expressões que tais, me lembraram o estilo da tradução da Ilíada, por Haroldo de Campos. Diga lá, há um nome para esta aglutinação tão interessante de palavras? Acho um recurso perfeito!

Em Cabeça feita você discorre lindamente sobre como “começamos a ver o mundo como literatura”, “quanto mais lemos, mais nos transformamos no que lemos”, o que lembra Borges e a força “fisicamente transformadora”. A relação é visceral, do mundo através da poesia (da literatura), da poesia através do mundo. Sabe que eu sempre senti isso? Desde pequena. Eu tinha um verdadeiro medo de ler livros, pois me sentia como que invadida por eles. Daí eu selecionava com muito cuidado o que eu deixaria invadir meu cérebro, meu coração e meu corpo. Só fui perder este medo nos últimos anos.

Mas, em Cabeça feita, ou na cabeça se fazendo, você propõe uma anarquia completa e total. “Quem sou eu?” “Quem eu quiser, várias vezes por dia”. E, ler você, seus textos, e ouvir as falas no Ateliê, é uma experiência deste ponto de vista rodopiante, radiante, sujo, fedorento, anárquico e ciclônico – para não dizer titânico!

“Não somos indivíduos, somos enredo”. Já faz tempo que percebi, com a filosofia, que as coisas são discurso, e são um universo, e não podem ser apreendidas sempre da mesma maneira, sob pena de se perder de vista aspectos muito ricos da experiência. E a gente jamais conseguiria, como você propõe, juntar Asterix e Admirável mundo novo.

No capítulo 3, Que é poesia?, é delicioso o modo como você apresenta o enigma da esfinge para, em seguida, desmontá-lo em sua estrutura, e remontar a questão, pois “errado estava o monstro”. Penso ter percebido aí uma característica sua: você se apropria da tradição e a renova, trazendo novos conteúdos consoantes com a sua proposta anárquica que é, por paradoxal que pareça, muito bem estruturada. É um processo de pensamento dialético, e um estilo que surpreende positivamente seu leitor.

Sobre as Anotações sobre a crônica não há muito o que dizer, o texto é claríssimo – outra excelente característica sua. E é nas Reflexões sobre as antigas reflexões sobre o conto que somos apresentados ao contemporâneo, ao “mundo dos vivos” – a melhor definição que já ouvi, acaba com toda a ambiguidade. Não vamos falar de definições mas de etiquetas, que ajudam a “identificar temperamentos”. Esse é o olhar que propicia desfrutar o contemporâneo. Mas acredito que sirva também para olharmos o passado – se considerarmos que tudo se reinventa num eterno presente. Que tal?

E, mais uma vez, você dá seu toque pessoal, como pensador, filósofo e escritor e, ousaria dizer, teorizador da literatura, ao acrescentar às três categorias da ficção, personagem, enredo, espaço, mais dois elementos, linguagem e tempo.

Neste momento, como em muitos outros ao longo do texto, me parece que você está fazendo mesmo uma teoria literária apesar do fato de nos ter advertido, desde o início, que não era esse o caso. Mas penso que você está fazendo isso pelo seguinte motivo: você faz reflexões sobre o contemporâneo, sobre o que as pessoas vivas estão escrevendo e refletindo, e isso, de falar sobre o tempo atual, é algo muito difícil. Dizem que só com muito distanciamento temporal se pode falar de algo. Começo a acreditar que você contradiz este dogma. E você não apenas descreve o que está ocorrendo na literatura hoje, como normatiza algumas aspectos e dá chaves de leitura e interação. E isto vai de encontro a um desejo meu quando me inscrevi no Ateliê: o desejo de contemporaneizar-me. Você me indicou o caminho!

O que mais eu poderia dizer? Eu poderia parar de comentar agora mesmo, pois seu texto é simplesmente genial, perfeita harmonia entre forma e conteúdo. Ou será que esta harmonia poderia também ser subvertida? Começo a pensar que isto poderia ser muito interessante… E em Encontro e desencontro este caminho parece ser possível.

Mas se não for uma teoria literária que você está construindo, sem dúvida é uma nova crítica cultural, que está em gestação e cuja compreensão de todos os elementos do contemporâneo, “por ora, podemos apenas intuir”, como você diz em Profetas contemporâneos. Excelente título por sinal. Você é bom nisso! Mas é em Nem sempre os grandes escritores são bons escritores que você esbanja seu talento e sua erudição – ainda bem, pois assim ficamos mais bem informados, com mais referências, e aumentamos nossa lista de livros para ler e pesquisar!

Com sua erudição e seu estilo, em Tipologia do escritor você nos ajuda a pensar, ou seja, a ler, e nos fornece categorias para tal. E ainda propõe um divertido exercício em festas de escritores. Farei esse exercício lá na filô – estou precisando deixar mais divertida toda aquela sisudez! É a temática da liberdade que define o tom do livro. Tudo isto não é uma tábua dos saberes; divirta-se com estes saberes, ria deles, use-os, abuse-os. Você pode! Eu posso! Será que consigo?

Um tema importantíssimo que você não deixa de lado é discutido no capítulo 20, Literatura infantil: apenas para menores?. É um capítulo muito bonito. Você lembra do silêncio e de sua importância, da formação de leitores e do livro-livro como máquina de sensibilização. Penso – ou passei a refletir a respeito – que os livros infantis também devem fascinar/encantar os pais/adultos, pois eles lerão para seus filhos e isto tem que ser uma atividade agradável.

Por outro lado, estive pensando sobre um tema que você pôs em questão na oficina, sobre o fato de a literatura juvenil estar agradando mais aos leitores adultos do que a literatura adulta, e isso poderia ser indicativo de uma infantilização, ou algo assim, dos leitores mundiais. E, depois de ler seu capítulo, fiquei com a seguinte ideia: a literatura juvenil tem se desenvolvido tanto que, pela sua alta qualidade, está conquistando os leitores adultos. Talvez estejamos vivendo o “século das crianças e dos jovens”, depois de eles terem sido tão ignorados na literatura e nos direitos humanos por tantos séculos. E, se os livros infantis passam a ter gravuras cubistas e impressionistas, que jeito mais saboroso de apropriar-se da tal cultura da humanidade!

O que você acha desse meu otimismo?

Os Dez mandamentos da literatura infantil é um dos capítulos mais tocantes e é um belo exercício de como ser um ser humano. Me faz lembrar a frase do dramaturgo húngaro Georg Tabori, que teria dito que “o ator é um ser humano profissional”. Isso vale para muitas outras áreas.

O capitulo 21, Alexandre Dumas e a guerra dos livros é fascinante. Engana-se quem pensa que “os livros são criaturas amistosas”! Penso que não são nem entre eles, nem entre o livro mesmo, consigo mesmo, algumas vezes.

E você termina com uma narrativa comovente sobre a sua experiência com as presidiárias em O escritor e as presidiárias. Você descreve muito sensivelmente sobre o processo de passar do particular à individualização, que começou logo no segundo encontro, e de como você conduziu isso através de temas-tabus, para que elas chegassem ao mais íntimo de sua vida como pessoas, não como presidiárias, e compartilhassem, lembrassem, rissem de si mesmas e da vida. Me comoveu. Foi você, num belo exercício de ser humano!

Parabéns pelo trabalho bem feito. E, obrigada por compartilhá-lo!

Aqui me despeço com um beijo.

Guta

[ Guta Girolamo é apaixonada por muitas coisas, mas principalmente por filosofia e literatura. Atualmente é aluna do mestrado na USP e às terças-feiras reúne-se com o coletivo As Lontras Daquela Hora, na Casa Mário de Andrade. ]

“Pequena coleção de grandes horrores” por Ana Peluso

16/10/2015

CapaPCGH

Nem que eu quisesse resumir PEQUENA COLEÇÃO DE GRANDES HORRORES, de Luiz Bras (Editora Circuito, 2014), a um complexo, porém elegante, desconcertante, eu poderia. O livro é mais do que isso. É também, e principalmente, inquietante. Irreverente, irônico, icônico, poético, bem-humorado, intertextual, inventivo, pós-humano, existencialista até, e talvez por isso tudo um desconcertante não baste. Não espere ler o livro de cabo a rabo, como se fosse um conjunto de relatos cheios de lugar-comum. PEQUENA COLEÇÃO DE GRANDES HORRORES está longe do lugar-comum e das saídas prontas e facilitadas. Cada conto (micro ou maxi) é uma porrada, um espanto, como, de certa forma, sugere o próprio título do livro. Há idiomas a serem decifrados. Algumas sementes de DISTRITO FEDERAL (do mesmo autor, Editora Patuá, 2014) estão lá. É difícil deixar um conto e passar ao próximo, e do próximo ao próximo, pois todos têm universos muito próprios, estruturas que se definem muito bem no imaginário do leitor, e o que eu mais aprecio em literatura: personagens e situações nada convencionais. O resultado disso é que você vai ficar preso ao livro, e mesmo quando finalizar sabe que sempre vai retornar. Comigo, por exemplo, algumas estórias (ou seriam histórias?) me chamam para serem relidas já, de imediato, de forma que, se houver algo urgente a ser tratado comigo, encabece o rol de espera, pois no momento me encontro boquiaberta e pensativa, sem muita reação ao dito mundo real, no final das contas tão bem representado aqui pelo ideário fantástico do autor.

[ Ana Peluso é autora da coletânea 70 poemas, lançada em 2014, pela Patuá ]